quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Para além do Ser ou Não Ser [Charlie] em Tempos de Boko Haram

A marcha dos líderes mundiais (apartados da multidão)
"(..) A senhora sabe que não se contam os mortos da mesma maneira em todos os lugares do mundo"
 Jacques DerridaFilosofia em Tempo de Terror, p. 101


Je Suis Charlie << Eu sou Charlie >> se tornou um dos maiores memes da história das redes sociais. Ele expressa a justa indignação com as vítimas do atentado à redação do Charlie Hebdo. E isso foi o mote da enorme manifestação ocorrida há poucos dias, em Paris, com alguns líderes mundiais conduzindo simbolicamente o cortejo.

Em resposta, veio o Je Ne Suis Pas Charlie <> que problematiza a questão, trazendo um ponto importante: sim, houve um desastre, mas nada é tão simples, seja porque há um uso suspeito da tragédia ou talvez porque o Charlie, por algum motivo, não mereça a beatificação.

O Je Ne Suis Pas Charlie foi dito por bocas diferentes, senão opostas: pelo velho senhor Le Pen,  por entender que o periódico atentava contra a moral política francesa (seja lá o que isso for para um ex-torturador da guerra da Argélia). 

Mas a negativa veio, sobretudo, à baila pelas redes de militantes islâmicos e seus defensores -- apesar de reconhecerem a tragédia, não poderiam concordar com a linha editorial do jornal e suas constantes infâmias.

A não adesão à marcha incluiu, inclusive, alguns dos sobreviventes ao ataque da redação do Charlie. Apesar de suas muitas contradições, não aderiram, eles não se deixaram usar pela marcha republicana

A dita marcha foi gigantesca, puxada simbolicamente por líderes globais -- embora isso tenha sido retratado como se eles estivessem mesmo guiando manifestação --, tomou Paris, num misto de êxtase geral, quando medidas de exceção eram encaminhadas.

Aliás, a própria ação na qual os suspeitos do atentado foram mortos, de tão desastrada, resultou na morte de muitos dos reféns -- que só não foi maior, ironicamente, pela atuação de um imigrante negro e muçulmano. Interessava mata-los, só isso.

Matar do mesmo jeito que, ironicamente, fazem os tantos líderes benevolentes no comando de suas máquinas de guerra. Muitos deles sequer têm o pudor de, nas contingências da guerra civil global, não apoiar movimentos fundamentalistas islâmicos.

A marcha de líderes, guiando o povo, aparece como uma recriação, pós-moderna e às avessas, de um episódio narrado por Victor Hugo em Os Miseráveis: Como um General Lamarque da era das redes sociais, o Charlie também teve seu cortejo conduzido como se fosse amigo do rei, mas aqui não foi para causar a indignação dos republicanos, ao contrário, foi para satisfazê-los.

Certamente, Charlie não é um Lamarque, embora não se possa dizer isso -- na era da liberdade de expressão (unilateral)

Um novo corte: pouco antes de tudo isso, enquanto a tragédia acontecia em Paris, o Boko Haram, organização terrorista de orientação wahabita -- o islamismo saudita --, realizava o massacre de Baga, na Nigéria, matando milhares de pessoas. Nem preciso dizer, a comoção global foi pequena ou nenhuma pelos mortos. 

O pouco que Baga ressoou na mídia serviu, naturalmente, para uma condenação do islamismo em geral, seja o que significar. No presentismo da era do (macarrão e do debate) instantâneo,  pouco importam as causas, os processos históricos e as complexidades -- e não é questão de se comparar o valor de vidas, elas já foram comparadas.

Os muitos líderes globais, e a boa sociedade francesa, não têm responsabilidade alguma. Mesmo que a Arábia Saudita seja aliada do ocidente, mesmo que grupos fundamentalistas tenham sido apoiados "taticamente", mesmo que os árabes e os muçulmanos sejam marginalizados. Apontar tais detalhes, é claro, soaria como uma perigosa "relativização" do que acontecer.

Justamente por isso outra: Je Suis Passé D'Outre Chose. Entre o ser ou não ser algo [um objeto qualquer], passar a outra coisa -- ou melhor, como a língua portuguesa nos permite dizer, ao contrário da francesa, eu me permito estar de passagem para outra coisa. 

Isto é, flexionar o "passer", fazê-lo algo no sentido do "passe" -- da mágica ou das religiões afro-brasileiras. Nada melhor do que fugir a uma dicotomia e, sobretudo, afirmar outra coisa além do ser, de fazer-se identidade no sentido de algum objeto. 

Os rumos dos acontecimentos levam a isso. O grande consenso da política francesa não é digno de adesão. É o mesmo consenso que, inclusive, se alia a fundamentalistas islâmicos no oriente médio se isso for "necessário. 

O mesmo consenso que, também sequer levou os terroristas a julgamento -- preferiu executa-los sumariamente, sem sequer se preocupar efetivamente com os reféns. Porque uma outra dialética, de fundo, sustenta o terror, terror de Estado e terror [supostamente] não-Estatal. Um alimentando o outro, quando não diretamente.

Há sempre uma afirmação de que os que não aderiram são, de certo modo, ou esquerdistas demais ou, pior chegam a ter culpa [ou até dolo!] pela chacina. Uma falácia sem tamanho. Tampouco quando afirmam se tratar de "relativismo", o qual excluiria a responsabilidade dos atacantes. 

Como explicar a recente proibição dos muçulmanos rezarem em público? Ou, antes, de proibir vestes islâmicas, independentemente se as mulheres islâmicas estejam, necessariamente, obrigadas a tanto? 

A questão não é que a laicidade radical se opõe à intromissão da religião, mas que nem a tal laicidade radical é para todos -- embora eu desconheça medidas do tipo contra cristãos na França -- , tampouco ela abole a religião. 

A laicidade radical francesa institui uma religião de Estado,  capaz de estabelecer e modificar as premissas do próprio jogo -- livre, inclusive, para se contradizer. Qual deus seria mais formidável -- e real -- do que este?

A questão da marcha republicana supera o caso Charlie. Ela diz respeito à própria maneira como as resistências, hoje, enfrentam armadilhas mais poderosas do que se pode supor. O mundo é complexo e cheio de ambivalências.  

O problema, por certo, não está em se compadecer por doze seres humanos mortos de forma violentíssima, covarde e absurda, mas que a piedade que nos é permitida ter, sob o regime estético-midiático, é demasiado reduzida -- e falta tanta piedade, que os momentos piedosos terminam como, no máximo, meras catarses.

E é um problema porque as nossas emoções, sensações e afetos são manipuladas a ponto de terminarem anestesiadas na maior parte do tempo, vindo à tona só quando, e na direção, que o sistema precisa. 

Os momentos de inflexão, na sua aparente potência, acabam se perdendo. Disso, no máximo acabamos nas mãos do indignismo momentâneo, sendo usados ao sabor de catarses, que vistas em si, são mesmo legítimas.

A situação não é simples. O poder não vai, nem precisa, criar uma nova grande narrativa quando pode criar um regime estético, baseado nos afetos, na manipulação das emoções e criação de sensações que assujeite o mundo. 

É como Rancière, crítico tão arguto do republicanismo francês, nos mostra ao longo de sua obra. Diante do Estado de Guerra Civil global, não podemos capitular diante do óbvio, do hype e permitir que a política seja reduzida a um mero flashmob armado [nos dois sentidos do adjetivo].




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