segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Poder Constituído: a Pacificação como expropriação ontológica ou expropriação primeira

Goya: Três de Maio de 1808 em Madrid
Fala apresentada no seminário Democracia e Regimes de Pacificação, no dia 25-11-2013, na PUC Rio.


A pacificação é como uma mercadoria. Mas não qualquer espécie de mercadoria: ela é daquelas que serve de meio necessário para uma outra. Por exemplo, a pacificação está para os megaeventos como o abridor de latas está para os enlatados: ela é até historicamente posterior a concepção do segundo elemento, mas lhe é logicamente anterior e absolutamente necessário como instrumento viabilizador.  


A pacificação, é verdade, torna-se no Rio algo especial porque há toda uma estratégia de branding em torno de si. Tanto que o termo está naturalizado no falar cotidiano. No resto do país, as mesmas táticas e estratégias de pacificação são conhecidas, embora a marca não seja propriamente trabalhada. Mas, reitero, ela está lá.


A história não desconhece a pacificação, aliás, longe disso, ela é, no mínimo, um episódio recorrente na práticas do Império Romano -- tanto quanto no Império Global que nos cerca. A diferença é que a pacificação de hoje, pelo menos desde o moderno, foi entificada: ela é, desde o moderno, coisa e não relação ou processo.

O presente seminário, pois, nos impõe uma questão urgentíssima: o que seria, e se seria possível, a paz verdadeira? A modernidade, não nos esqueçamos, nasceu sob os auspícios de uma ideia curiosa: a nova ordem política seria um mal necessário para o fim da violência em relação à qual estaríamos, por natureza, submetidos. Seu objetivo seria a pacificação. Precisaríamos, para tanto, combater a violência imprevisível e irracional com violência organizada, regulada e racionalizada na forma do aparato estatal. É Hobbes, é o Leviatã.


Como podemos depreender de Giorgio Agamben em A Comunidade que Vem, essa noção remete a uma fantasia teológica, segundo a qual a perfeição ordena-se não pelo não cometimento do pecado ou do delito, mas sim que o “perfeito se tinha apropriado de toda a possibilidade do mal e da impropriedade e não podia, por isso, fazer o mal”.


As novas questões que surgem são: a ação de um Estado que, por meio de sua polícia, realiza a paz armada da ocupação é, de fato, uma pacificação e, se for, seria a única possível? Pois bem, a violência dos aparatos de Estado produziu, da publicação do Leviatã em 1651 até os dias atuais, os maiores morticínios que a história da humanidade registrou. Do mesmo modo, o sistema repressivo, o tridente policial-judicial-prisional, é, hoje, quase tão onipresente quanto o deus bíblico.


Segundo a metafísica moderna autorizada, essa passagem entre o estado de natureza e o estado social se daria mediante a adoção, entre os homens, de um contrato. E o contrato não é senão o meio universal pelo qual a burguesia, desde sempre, resolve seus problemas. A natureza em Hobbes, essa estado pavoroso que precisa a todo custo ser superado, é um espaço negativo; mas o devir social do homem, dado pelo contrato, só é possível sob a linguagem contratual burguesa.
Desse ponto de vista, não é que para Hobbes -- e também para os demais contratualistas, embora de forma atenuada -- o homem tenha inventado essa prodígio que é a civilização, a qual em troca de sacrifícios necessários nos garante a paz que não tínhamos na vida selvagem.


Na verdade, o que está em discussão é que tal estado de natureza remete a uma natureza desnaturada do homem, isto é, a metafísica hobbesiana inventou uma natureza natural -- negativíssima --, separando o homem do meio-ambiente e de sua própria condição comum. Tal movimento, gera uma divisão binária entre natureza e sociedade e, sim, expropria o si mesmo do homem, tornando-o irremediavelmente incompleto.
Enfim, é no campo de uma filosofia primeira que se desenham os conceitos que servirão, tão logo, à expropriação das propriedades comunais na Europa. Não queremos a natureza, não podemos deseja-la, porque a sua violência virtual indomável justifica as violências reais e racionais. A violência organizada, cada vez mais voltada para o interior dos súditos, criaria um cenário de intimidação geral, segundo o qual a paz se estabeleceria de fora para dentro.


Essa forma de disciplina se dá, anote-se, cada vez menos por meios físicos para dar lugar ao domínio afetivo-psicológico -- que só irá avançar desde então. O que não quer dizer que essa forma de domínio não precise de violência física, mas o faz como instrumento de uma verdade discursiva e simbólica, o que é até pior do que era: quando matam realmente um, matam simbolicamente nós todos, introjetando a ideia de morte no inconsciente coletivo.


O pensamento hobbesiano cria uma tradição poderosa, que perpassará Rousseau, Kant e mesmo Locke para, enfim, desaguar em fenômeno histórico-político: e isso acontece quando a burguesia golpeia a revolução francesa, em seus desdobramentos internos e internacionais, para tomar para si o lugar que antes era da nobreza.


A burguesia, que solapou a revolução feita por camponeses, mulheres, artesãos e o baixo clero, tinha um interesse mais até do que metafísico no hobbesianismo, uma vez que seu discurso encaixa como uma luva naquele momento histórico: o estado de natureza remeteria à turbulência da revolução, origem mitificada da nova ordem, mediante o qual, para o bem geral, os cidadãos precisariam abrir mão da liberdade ímpar que dispuseram naquele momento, na forma da nova ordem.


Isso legitimou a fala ambivalente da burguesia, aquele que a permitiu  defender a resistência contra o regime antigo enquanto, no mesmo discurso, criminalizava a resistência contra a velha opressão do regime novo. Esse duplipensar irá mais tarde se repetir em outras revoluções, mesmo as socialistas, como bem expôs com brilhantismo Orwell na Revolução dos Bichos: mudam-se os atores, talvez também o figurino, mas encena-se a mesma peça com os mesmos personagens.


Antonio Negri, em seu clássico Poder Constituinte, nos lembra as palavras de Napoleão Bonaparte, que declarava o fim da revolução em razão da edificação da constituição. E Negri, mais do que isso, nos lembra que contemporaneamente ao início da construção da modernidade tradicional, uma outra modernidade, maldita, na tradição de Maquiavel, Spinoza e Marx, nos permite pensar um outro mundo.


Assentado na metafísica spinozana, Negri ataca o binarismo tradicional entre Poder Constituinte e Poder Constituído, o qual tenta esvaziar o conteúdo da revolução, reduzindo-a ao papel de mero mito fundador de uma nova ordem: o Poder Constituído é farsa histórica, que tenta apropriar-se do discurso jurídico comum da multidão em sua luta permanente na geração e garantia de direitos. O Poder Constituinte não se encerra, ele é fluxo, enquanto o Poder Constituído é barragem.


A nova ordem já nasceu muito velha, justamente por ser a mesma ordem, só que com novos donos. Ironias do destino, o que se passa na Europa dos fins do século 18º não é nada diferente dos rumos da revolução russa, pouco mais de um século mais tarde.Não poderia ser diferente, a natureza em Spinoza não é uma generalidade negativa na qual são reduzidas as multiplicidades -- como não-humanidades, não-civilizações --, mas potência que funda e anima a vida.


No Brasil de hoje, existe uma continuação descontinuada de uma larga tradição de opressão que não é estranha a um país de origem colonial. A mesma polícia surgida para eliminar legalmente quilombos e formas de resistência social é aquela que, por seu turno, opera hoje enquanto função policial -- que não se restringe as meras instituições policiais, mas ocupa um vasto cenário que operacionaliza até nós mesmo.  


Violência dos homens de bem em prol da paz social e da obra. A paz dos totalitarismo jamais foi paz de fato: é a paz dos cemitérios, dos mortos e dos intimidados. Uma paz que se pode só pode ser tomada como tal na medida em que naturalizamos a violência policial enquanto, no mesmo movimento, desnaturalizamos os homens mortos, torturados e feridos.


Mas a paz armada da pós-modernidade, embora contígua em relação ao espírito da paz tradicional do moderno, nos apresenta um novo regime afetivo: não vivemos mais às custas do par medo-esperança, mas sim de outro par, qual seja, desespero-segurança.


Antes, éramos impelidos para o futuro, o que nos exigia resignação presente, seja pelo temor das punições aplicáveis ou pelo ânimo com um bem comum que virá apenas amanhã, na forma de utopia.


Hoje, continuamos deslocados no futuro, mas não temos mais nada a esperar; Godot, segundo nos contaram no telejornal, não virá mais, logo, o desespero é a palavra de ordem e a única coisa que podemos desejar é, vejamos só, estarmos e termos seguros: nas nossas casas, nos nossos carros, na nossa sexualidade...


Essa nova polícia não é mais agente do temor, da disciplina, mas um dos fatores garantidores da segurança, o que lhe dá mais margem de manobra e intervenção do que em outras ocasiões. Apesar da Constituição Brasileira de 1988 ter constitucionalizado a militarização da polícia, nos termos do Ato Institucional 5 da Ditadura Militar, não se vê nada muito diferente nas polícias ao redor do globo, em relação às quais a militarização de fato avança às custas de toda sorte de argumento.


A sociedade da segurança cria o risco, seja por meio de fantasmas discursivos ou por transformar a natureza comum dos homens em tabu, fato último que ocorre quase sempre em torno do dispositivo de fetichização da morte. A morte e o seu vazio tornam-se onipresentes na vida contemporânea.


A demanda por uma miríade de soluções finais, idem. Na sociedade da segurança, a polícia atinge as molecularidades, que se tornaram mais complexas e irascíveis. O ataque é contra o nosso inconsciente, essa função polícia é um instrumento repressor-persecutório difuso, inclusive, a própria polícia.


O corpo desaparecido, e possivelmente supliciado, do ajudante de pedreiro Amarildo é a expressão do nosso tempo: em tempos em que o futuro faliu conosco dentro, o desaparecimento dos corpos é prática cotidiana, tanto simbólica quanto realmente -- e real porque simbólica. Não é Amarildo sendo morto, somos todos nós de alguma maneira.


A insustentabilidade um cenário anterior, de violência generalizada, apenas esconde uma justificativa cínica: as causas que levam à violência são ignoradas, a ação apenas mascara o efeito, a própria violência difusa na forma de criminalidade,  justamente para manter as causas.


A paz construída de maneira incomum pelo regime securitário é impossível. A paz sem liberdade é apenas, e tão somente, o silêncio dos oprimidos numa guerra que eles não declararam, nem tinham condições de declarar. Paz verdadeira só é possível como consequência das lutas e do amor, jamais como condição prévia.  À moda de Spinoza, podemos dizer que a paz verdadeira se faz apenas pelos homens livres, em comum acordo, por força de seu desejo autonômo e desimpedido.

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