sexta-feira, 9 de novembro de 2012

PCC vs PM: a Revolta nas Entranhas do Inferno

O estado de São Paulo arde nas chamas de uma guerra cruenta travada entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e a Polícia Militar local. Todas as manhãs, o noticiário relata o tétrico saldo noturno: uma quantidade absurda de mortes bárbaras, seja de policiais ou de cidadãos supostamente vinculados ao PCC. Notícias de toques de recolher, muitas vezes surtos de paranoia coletiva, percorrem o estado, as pessoas comuns temem sair na noite, alguns ônibus queimam aqui ou acolá, tudo isso depois de seis anos de uma relativa calmaria. Sim, seis anos. Desde o famosos ataques do PCC de 2006.

Há várias possibilidades de se enxergar a situação, e várias formas de reagir. A mais recorrente é, apenas e tão somente, um agravamento da fobia urbana difusa e confusa dos contemporâneo, na qual pouco importa o que aconteceu: mas as ruas e os espaços públicos que já eram vistos como zonas de permanente de violência e impureza, convertem-se em algo pior, o delírio põe em questão o direito à noite: o monstro ronda a noite, não devemos sair. A outra, uma crítica mais direcionada e conservadora às táticas de combate ao crime, umas mais alinhadas aos direitos humanos, enquanto outras partem para o delírio paranoico clássico, beirando o desejo de fascismo.

No entanto, pouco se fala, seja mídia ou na crítica, sobre como a atual rodada de confrontações se iniciou, muito menos vê-se algum esforço para discutir o histórico do que estamos falando. Primeiro de tudo, o PCC surge do massacre do Carandiru, que mal acabou de completar 20 anos -- como discutido aqui -- um ato de exceção do desastroso governo estadual de Fleury que resultou no massacre de 111 detentos em rebelião: eles estavam há tempos em condições sub-humanas, submetidos ao risco permanente de contaminação pela AIDS, pela tortura e toda sorte de coisas.

Das pilhas de chacinados naquela ocasião, surge uma organização que de lá para cá se organizou mais e mais, controlando presídios, criando uma rede entre presos, suas famílias, suas sub-redes no exterior da prisão. O PCC, é evidente, não se trata de uma organização revolucionária, tampouco é o contrário, enquadrável em qualquer métrica maniqueísta: ele é a prova que a ordem está em frangalhos, seja no que toca à sustentação do seu modelo teológico tomístico -- hierárquico, numa escala que vai do paraíso (as coberturas de prédios luxuosos dos bairros de elite) ao inferno (as prisões), passando por círculos intermediários.

Mas o PCC, enquanto organização que nasce da resistência ao descalabro --das prisões, apenas um dos muitos reflexos possíveis do nosso estado de coisas social -- e que se impõe sobre a incapacidade das forças políticas postas, não é um contraponto à ordem, mas sim nutre uma relação perversa e ambígua com ela: ele é a organização de um ódio difuso e sem programa, voltado para um governo paralelo, e moderníssimo na forma de um sistema de redes, e para uma economia paralela, que inclui todos os negócios gerados em torno do seu financiamento por detentos e suas famílias (a rede de advogados a seu serviço, a rede de tráfico de armas etc).

Aliás, pelo fato do PCC ter forma Estado é que o estopim específico da crise atual foi deflagrado: enquanto um de seus famosos tribunais julgava, ele foi surpreendido por um comando da Rota -- outra personagem notória, enquanto força da polícia bandeirante nascida para o combate à incipiente guerrilha urbana e destinada ao enfrentamento cruento da "violência" pós-regime -- que perpetrou mais um massacre. Daí em diante, tivemos uma concatenação de assassinatos e retaliações que até a noite de ontem não teve fim.

O PCC, o mesmo PCC que parou o estado de São Paulo em 2006 depois de uma série de revoltas no sistema penitenciário, está vivíssimo, ao contrário da retórica oficial dos governos tucanos de São Paulo. E qualquer um que conheça o sistema, sabe muito bem o quanto o PCC conservou sua influência durante os últimos seis anos, quando alguma espécie de acordo tácito, ou algo mais do que isso, manteve presídios calmos, patrocinou a considerável queda dos índices de violência no estado e assistiu às seguidas reeleições dos mesmos figurões políticos de sempre no estado.

Se o PCC é um sistema em rede semelhante a modelos como a Al Qaeda -- mas cuja sofisticação é justamente ser hierárquico e extremamente centralizado sem deixar de ser capaz de (i) funcionar na sociedade em rede; (ii) se integrar ao Estado de maneiras pouco usuais e até surpreendentes; a polícia, por outro lado, funciona como um destacamento oficialmente estatal, mas cuja atuação transcende a linha e nem sempre funciona de acordo com o programa governamental, mas sim de acordo com intuição, ela mesma, do que seria a providência na terra.

A polícia, não apenas em São Paulo, como se viu recentemente na Bahia, pode agir contra o Estado em certas circunstâncias, sobretudo quando ele está com a sociedade de modo a desafiar a ordem posta. Maquiavel já via isso quanto aos exércitos e a história dos golpes latino-americanos comprova essa direção; e as polícias podem agir nem sempre a favor, ou contra, mas também a despeito do comando governamental -- e quando agem a favor, como no caso do Pinheirinho, jamais estão apenas "cumprindo ordens", mas aceitando aquilo em relação ao qual poderiam se amotinar.

Será que foi o caso aqui? Aparentemente, sair da política do banho-maria dos últimos seis anos, não interessava ao governo do estado, ainda mais em um ano eleitoral. A menos que ele pudesse capitalizar muito com isso, o que não parece muito crível. Mas foi sua polícia que deflagrou o processo em questão e, numa luta particular serve de combustível para a atual guerra que ela trava com o PCC, embora isso possa ter desobramento sobre os civis. Não é só o PCC que ameaça São Paulo como diria Antonio Martins.

Há muito de conspiratório nisso, mas as coisas sempre podem ser mais simples. Um PCC quieto e colaborando para a manutenção da ordem das prisões (por dentro do sistema) interessa sim ao poder, uma polícia que combata apenas e tão somente os estilhaços de criminalidade que incomodem a boa sociedade, idem. Mas tanto PCC quanto a PM, no limite, agem por si com uma liberdade prática enormíssima (talvez a polícia mais ainda que o PCC...).

A crise aberta não é de segurança pública, ou a fratura exposta da crise social sem fim. Ela é uma crise do nosso e de qualquer modelo de organização coletiva. Não é por abstrações ideais que poderemos fazer uma coletividade humana viver bem, tampouco por um modelo fantasioso de organização que, na prática, alude a todos os mitologemas e superstições teológica possíveis, com uma economia movida à base de culpa, suas mansões e paraísos particulares e a vida comum feita um inferno, com a prisão como seu grau derradeiro.

Se os infernos entraram em colapso quando a máquina-(pseudo)divina do Estado atualiza o medo -- desfazendo-o, pois -- suas entranhas emergem na forma de uma erupção. Como manter uma hierarquia social teológica, ao modo de São Tomás de Aquino, se os infernos perderam sua eficácia e a danação é combustível de revolta, não mais anestesia? Há uma rachadura definitiva.







 

Um comentário:

  1. Niilismo incompleto: é o "nós" do "cidadão de bem" contra o "outro", "bandido, traficante, não-humano". É o instinto judaico do diagnóstico nietzscheano, a moral de rebanho, de escravos. Isso tudo num país que está entre a modernidade e a pré-modernidade; Deus está morto mas elege bancadas inteiras e sustenta o despotismo esclarecido de governantes lacônicos: "quem não reagiu, não morreu", "está tudo sob controle"... A crise é de valores, mas não se cogita de ultrapassa-los, antes faz-se de tudo para reafirma-los. "Está tudo sob controle" é o sentido de uma política autoritária que perdeu seu sentido. E quem pagará com sangue é o rebanho.
    Abraço,

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