domingo, 25 de dezembro de 2011

Vinte Anos sem a URSS

Yeltsin e Gorbatchiov -- Artífices do fim da URSS
Hoje é Natal, mas não apenas: o fim da União Soviética também completa exatos vinte anos. A situação russa, neste exato momento, não é nada boa, como não era no começo dos anos 90. As manifestações massivas nas ruas de Moscou, ontem, são uma continuação da revolta contra as últimas eleições parlamentares, provavelmente fraudadas, realizadas no início do mês. Não só: elas aludem ao agravamento da crise pela qual passa o país.

O atual grupo dirigente da Rússia, liderado por Vladimir Putin, ascendeu dentro do caos dos anos 90, quando Boris Yeltsin implementou uma série de reformas econômicas liberais fracassadas, reagindo, depois, com mão forte contra os manifestantes e instaurando uma crônica instabilidade. A farsa de Yeltsin, feito herói no início dos anos 90 pela mídia mundial e por burocratas ávidos em tomar para si para o patrimônio estatal, caiu por terra em poucos anos.

Putin e os seus uniram as ilhas de poder do país, surgidas desde o fim do Partido como demiurgo geral do nação - os serviços secretos, as forças armadas, os oligarcas  (os antigos dirigentes comunistas que enriqueceram com a privataria local) e a burocracia do Estado. Dentro do mais puro dirigismo, inseriram o país na economia mundial sobretudo como exportador de hidrocarbonetos - e mesmo como um agente global duro, não deixaram, no fim das contas, de fazer o jogo do Ocidente, a União Europeia que o diga...

Depois de um breve período de euforia capitalista sob a liderança  de Putin, os russos assistiram ao esgotamento do seu modelo coincidir com o vendaval da crise econômica, que expôs definitivamente os pés de barro da new economy à qual a Rússia aderiu não mais como potência, mas sim como país periférico. A dependência externa, de um mercado mundial em crise, e a improdutividade causada por um sistema político autoritário fazem com que o arranjo de poder russo, como temos insistido por aqui há tempos está ferido de morte.

Nesse cenário, a figura de Mikhail Gorbatchiov reaparece. Se há vinte anos, ele, enquanto último líder soviético, conduziu o fim do país de forma controlada, hoje, ele emerge não mais para descer a bandeira vermelha do Kremlin, mas para pedir que Putin renuncie às ambições presidenciais em 2012. A voz do último líder soviético, no entanto, tem pouco ou nenhum peso em seu país, uma vez que ele é apontado como culpado da decadência russa, na medida em que suas reformas, além de não surtirem efeito algum, serviram como janela para os apparatchiks aumentaram mais ainda o seu poder, se apoderando das estatais que geriam. 

Se Gorbatchiov não é um problema relevante, por outro lado, não custa lembrar que já não é de hoje que Putin está em maus lençóis: suas negociações para tentar um terceiro mandato fracassaram e ele teve de optar pela saída de lançar seu braço direito, Dmitri Medvedev, como candidato presidencial em 2008 - com Putin, no entanto, chefiando o país, inconstitucionalmente, como premiê nos últimos anos. 

Isso ilustra o caráter farsesco das instituições russas: de repente, o semi-presidencialismo russo tornou-se um parlamentarismo porque era Putin o premiê. De repente, Putin não emplacou as reformas políticas que queria, mesmo tendo vantagem no parlamento naquele instante, porque para as instâncias reais de poder, era melhor se apresentar com uma aparência de "normalidade" para o Ocidente. 

A multidão que hoje lota as ruas de Moscou, por sua vez, é difusa e está alheia a isso. Ela é composta de neo-comunistas propondo um modelo chinês até nacionalistas falando abertamente em corporativismo, passando por anarquistas. Eles querem novas eleições parlamentares, uma vez que as fraudes no último pleito são evidentes e o Rússia Unida, partido de Putin, certamente não teve a metade dos votos que reivindica - ficando com maioria fraca (relativa) no parlamento ou atrás dos comunistas, cujos dirigentes, ao contrário de sua militância, estão por demais satisfeitos com o resultado manipulado de um pleito no qual eles foram os prováveis ganhadores, o que ilustra apenas a sordidez das relações entre os grupos políticos russos e o Kremlin putinista.

As novas eleições marcariam o fim da era Putin e, de certo modo, o fim da era Yeltsin também, uma vez que Putin é uma descontinuidade dentro da mesma linha. Putin, no entanto, é ainda o maior fiador desse esquema. Sem ele, qualquer substituto que tentasse manter o status quo estaria fadado ao fracasso. Isso lhe garante um bolsão de oxigênio, embora as chances dele sofrer um golpe estejam crescendo nas bolsas de apostas, pois seu personalismo pode fazer com que com sua queda, gatopardianamente, acalme os ânimos nas ruas - e dar tempo da elite russa negociar um novo arranjo para o esquema, o que, advirto, tem poucas chances de ser eficaz.

A finada União Soviética, aliás, ficou para trás mesmo de seus pares ocidentais pelo uso que deu à tecnologia espacial, incapaz que era, pelo seu sistema político, em avançar na  produção intensiva de tecnologias de informação e comunicação, justamente o ponto de virada dos anos 70, com a economia do conhecimento - que, no entanto, não parece tão conciliável com o Capital quanto proclamavam os profetas yuppies da new economy


O que determinou o fim da União Soviética não foi uma crise "natural", "objetiva" - que teria exposto a impossibilidade de qualquer opção ao capitalismo -, mas sim o fruto de contingências e de decisões políticas sobre o que e como produzir tal e qual os limites daquele sistema político e a opção de não reforma-lo - algo evidenciado, inclusive, pelo caráter de continuidade na forma de exercício do poder e de seus atores dos anos 80 para cá.

A ausência do Estado soviético no cenário global  tem um significado incerto; é claro que o fim de uma URSS, nos moldes imperiais dados por Stalin, facilitou o processo de constituição do  processo de globalização, cujo grande entrave tem sido, fundamentalmente, a tensão hegemonista norte-americana, sem hora nem lugar, uma vez que o capitalismo transcendeu, irremediavelmente, os limites de qualquer fronteira nacional. 

Em virtude disso, para ter sobrevido aos anos 90, o Estado soviético precisaria de uma reforma profunda. Tivesse acontecido isso e a pressão pela constituição de um multilateralismo entre Estados estaria em um estágio certamente mais avançado, pela impossibilidade do unilateralismo americano.

O fato é que as contingências da História puseram fim a um sistema de organização tirânico, ironicamente nascido do desvio de um processo revolucionário magnífico,  só que da pior forma possível, aprofundando-o em outros termos, o que, agora, está em crise novamente. A desestabilização russa é um dos grandes assuntos de 2012 e, sem dúvida alguma, precisa ser visto em paralelo com a crise da Europa, pois uma pode mudar decisivamente os rumos da outra. 



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