terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Crescimento do Salário Mínimo: Trabalho, Vida e o Porvir

Carregadores de Café - Portinari
Dilma Rousseff assinou o decreto que eleva o salário mínimo de R$ 545,00 para R$ 622,00 para 2012. Trata-se de um reajuste dentro dos parâmetros que o governo Lula articulou, em acordo com as centrais sindicais há poucos anos: o salário mínimo passou a ser reajustado por um valor que engloba (i) a cobertura da inflação do ano anterior e (ii) o acréscimo da taxa de crescimento do PIB de dois anos anteriores - uma vez que os dados oficiais do PIB demoram a sair e o ajuste do salário mínimo precisa ocorrer no começo do ano. 

A valorização real do salário mínimo - usado como base de cálculo de grande parte dos salários e aposentadorias e pensões - foi um dos pilares da política social do governo Lula. Os ganhos do aumento do salário mínimo vão muito além do que parece: cada pequeno ganho para quem está em situação de miséria ou pobreza faz toda a diferença - o mesmo aumento proporcional nos ganhos de alguém de classe média não faria tanta diferença, uma vez que sua renda já cobre os custos do mínimo existencial.

O impacto biopolítico disso é grande, pois não falamos apenas em ganhos sociais, econômicos ou políticos, mas de produção, reprodução e autoprodução da própria vida. As multidões de famintos diminuem, desonerando formalmente sistemas de saúde, criando microcircuitos econômicos em cidades do interior ou periferias de grandes cidades - dependentes dos rendimentos de funcionários públicos, aposentados e pensionistas - pressionando a produção na direção de atendimentos de bens básicos para a sobrevivência - uma vez que quem está empoderado são pessoas que necessitam de insumos básicos - etc.

Cria-se, a partir desse processo, uma nova conjuntura política, na medida em que velhos tiranetes já não são mais eleitos, pois seu poder de chantagem habitual com as necessidades de sobrevivência alheia diminui. Na medida em que a vida é gradualmente mais garantida, o debate torna-se outro - e aqui não vai uma visão ingênua, ao contrário, a democracia representativa é sim uma mistura de salvacionismo, chantagem e comportamento de manada, como já dito neste blog, mas no instante em que não estamos falando da salvação da morte certa por inanição (e a chantagem em relação a isso, com doações eleitoreiras de cestas básicas em vésperas de campanha) e de um manada de famélicos, as coisas mudam sim de figura.   

Isso e políticas de renda redistributivas, como o bolsa família, que se associam à própria existência dos indivíduos e não do trabalho exercido por eles, mesmo que não seja ainda uma renda universal propriamente dita, ajuda, sem embargo a produzir uma coexistência para melhor de forma concreta. 

É claro que a valorização do salário mínimo pode ser capturada dentro de uma política de proletarização dos pobres, na qual tal mecanismo serviria para organizar a sociedade por meio do binômio capital-trabalho. No entanto, é preciso considerar que aumento de renda laboral gera um enfraquecimento da capacidade do capital ordenar as relações sociais - um problema que o capitalismo, desde tempos imemoráveis, não conseguiu resolver a seu favor -, ainda mais com a manutenção do bolsa família no núcleo duro das políticas de governo. 

Sinais preocupantes como as mudanças no seguro-desemprego este ano, no entanto, não deixaram de surgir. Tais mudanças obrigam os trabalhadores que largaram seus empregos a procurarem, tão logo, um novo emprego para não perderem o benefício. Isso, ao contrário do que parece, atenta menos para uma proletarização da plebe, que se opera apenas no curto prazo, do que para uma sobrecarga do sistema: isso não consegue proletarizar todos os setores não-proletários (como os índios) e, ao proletarizar outros tantos, força a demanda por repartição de renda do capital. 

Com isso, não se segue qualquer apologia ao etapismo, como se essa medida fosse, por decorrência lógica, produzir uma socialização da renda e consolidar uma transformação política (o só se opera pela liberação e não pelo aumento da sujeição em qualquer nível ou instância). Antes de mais nada, isso produz uma tensão política severa, que pode forçar o capital - diante dos sintomas sociais como greves, inflação etc - a surgir com uma solução (final?) para isso - fórmula clássica do bonapartismo, do fascismo histórico ou mesmo do conservadorismo "democrático", em suas variadas gradações ou composições. 

Diante dessa quebra de braço, podemos "vencer" a arena de disputa dada, mas as chances disso são sempre pequenas, pois o sujeito encontra-se em tal grau de fragmentação em relação a si mesmo e em relação ao seu meio, que ele dissocia o que está associado, por não lhe ser permitido viver o processo de produção  - inflação dissociada da forma como capital reage ao "pleno emprego", criminalidade como consequência da inclusão excludente etc. 

Para além do efeito laboral propriamente dito, é interessante pensar nos efeitos macroeconômicos, sobretudo, no que toca à grande polêmica do começo do ano: como reajustar o salário mínimo, uma vez que o ano de referência de crescimento, 2009, a economia brasileira não cresceu? Com efeito, poderíamos tirar a média aritmética do crescimento de 2009 - irrealmente baixo -e do de 2010 - irrealmente alto - e compensar os trabalhadores, mas o governo fez valer o acordo que ora ele repete, em circunstâncias outras. Por quê?

Diante das pressões inflacionárias do começo do ano, se em 2009 o país tivesse crescido 7%, teria o governo mantido o acordo? Talvez sim, desde que os ajustes das contas públicas lhe permitisse isso, mas é fato que o pequeno aumento de 2009, diante de uma economia superaquecida do início do ano, bem como o grande aumento de 2010, diante de uma economia desaquecida no início de 2012, lhe caíram como uma luva para honrar sua palavra. 

Isso alude a um terreno movediço, de uma economia baseada na confiança e em afetos passivos, que podem perfeitamente criar comportamentos de manada terríveis, com a inflação comendo o aumento real de um salário mínimo super-aumentado, na melhor das intenções. Nesse sentido, o critério lulista de reajuste é uma bela astúcia, pois como toda objetividade, ele expõe o quanto as economias são construções subjetivas, tal a forma que se quedam a entes ideológicos como a legitimidade e a segurança.

Certa crença na concretude das objetividades por parte de Dilma, como vemos na questão  do seguro-desemprego ou em outras - a "racionalização da máquina", "a faxina" - talvez seja a grande diferença entre ela e Lula, isto é, a diferença entre o racionalismo iluminista e moderno da primeira - agora como coluna vertebral e não mais como parte - frente à virtù renascentista do segundo. Eis aí como as sementes de uma restauração conservadora, no plano do representativismo democrático pátrio, podem acabar germinando.

É por essas razões e por outras que dizemos que a constituição do comum não passa pela lógica laboral do socialismo (ocidental ou oriental), sobretudo tendo em vista a natureza da economia do conhecimento contemporânea, cujo aumento da própria produtividade demanda uma liberação gradual do trabalho assalariado - e que está em plena tensão com um capitalismo cognitivo atolado, pois se ele insere uma lógica de instantaneidade extrema, simultaneamente, seus mecanismos de captura, como os direitos autorais, determinam uma lentidão que vai de encontro à própria velocidade que o sistema previamente ditou.

Nada do apresentado, frise-se, significa qualquer objeção ao programa de aumento do salário mínimo, pois, antes de mais nada, ele é uma medida humanitária que, reiteramos, libera os "sujeitos" do trabalho pelo empoderamento da renda e não o contrário. Embora só isso não baste, para bastar precisamos partir daí. Medidas que aumentam o vínculo empregatício, em desfavor da liberdade de trabalhadores e ex-trabalhadores, é que são problemáticas, como essas mudanças no seguro-desemprego - que entra em choque com o programa de aumento do salário mínimo, embora no ideário desenvolvimentista, ambas se apresentam como medidas harmônicas entre si, à moda de Keynes, fundadas na crença de um otimismo progressivista, cujo desmoronamento, infelizmente, está expresso na Europa contemporânea.


4 comentários:

  1. Uma regra, como a adotada por Lula e mantida por Dilma, para a valorização do salário mínimo, é muito positiva, a partir do momento que as centrais sindicais são obrigadas à aceitar acordos de longo prazo. Os pedidos para que o aumento ano passado fosse maior, acho eu, foram ridículos (o que é confirmado com o silêncio geral nesse momento de alta excepcional)
    Seria interessante, creio eu, se o o Salário Mínimo também não fosse reajustado tendo também algum parâmetro ligado à taxa básica de juros da dívida pública, não seria, Hugo?
    Bom mesmo seria um plano real de metas para transformar o BF em renda básica da cidadania no médio/longo prazo, mas isso por ora é utopia.

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  2. Rafa: esse parâmetro já existe indiretamente. De toda forma, poderíamos pensar em outros "critérios objetivos", embora a validade deles, perceba, não repousa em nenhuma "verdade", mas sim na utilidade prática que eles poderiam ter. Nesse sentido, seria útil atrelar o SM à Selic? Não vejo como.

    E o diabo da renda básica de cidadania, vendida pelo velho Suplicy e não raro desacreditada, deveria ser uma obsessão nossa neste exato instante, embora esse trabalhismo todo de Dilma nos tire desse rumo.

    abraços

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  3. a obsessão de Dilma com dados é que ela se ilude com o fato de que exista alguma realidade.

    É um ranço positivista, castilhista no limite. Nada demais: a República sempre foi assim, fora o interregno FHC e Lula, cada um Macunaímico a seu modo, que antes de acreditarem numa realidade a ser retificada, supuseram uma a ser moldada. Sambando na lama de sapato branco, cada artista dando o tom, dando o que tem - festa acaba, aquele negoço.

    Daí Dilma é apenas um retorno do recalcado da República. Claro, sendo mulher, poderia ser uma reconstrução do que fora foracluso do hipotético 3º Império de Isabel se Deodoro não tivesse dado o primeiro de uma série de golpes paulisto-militares.

    Mas ela não enxerga tão longe assim, paciência. Não se espere de gerente que aja como dono da loja. Nem como mascate.

    (e claro que eu que trabalho com políticas públicas tenho também obsessão por dados, estatísticas, realidade como ela está - mas também sei que olhá-la é já mudá-la. Kurt Lewin, baby...)

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  4. Sim, Lucas, é um pouco disso. Dilma vê a realidade como um dado a ser decifrado enquanto FHC e Lula a veem como um processo, o curso de um rio, digamos. Mas macunaímico cai mal para FHC, filo-maquiavélico lhe cairia melhor.

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