domingo, 19 de setembro de 2010

Sobre os Novos Profetas, a Laicidade e a Liberdade


Certos acontecimentos recentes na PUC, concernentes à proibição feita pela arquidiocese - ao arrepio da Constituição - do lançamento de um livro contra a criminalização do aborto dentro do campus, fez-me refletir sobre o que escreveu um sagaz polidor de lentes da Amsterdã do século 17º, que em seu Tratado Teológico-Político  - escrito anonimamente, muito embora a tática não tenha logrado o êxito esperado -, tratou, entra outras coisas, de desacralizar o religioso, trazendo à baila o viés identitário que ele compartilha com outras formas de opressão política - embora o religioso por meio da hábil construção do sagrado, acabe se tornando um meio muito mais efetivo de dominação por revestir-se de uma aura que lhe torna, por vezes, intangível pela invisibilidade que ele consegue atribuir aos seus mecanismos de vigilância, controle e sujeição. A esse respeito, não podemos deixar de nos atermos o debate sobre a profecia e a figura do profeta (do hebraico nabi, o intérprete e o orador), em relação aos quais ele lança mão já no início da obra:


"Pode-se, pois, afirmar agora sem nenhuma reticência que os profetas não perceberam a revelação divina senão através da imaginação, isto é, mediante palavras ou imagens, as quais quais ou eram reais, ora imaginárias (...) Tendo, portanto, os profetas percebidos pela imaginação o que Deus lhes revelou, não restam dúvidas de que eles poderiam ter percebido muitas coisas que excedem os limites do entendimento, pois com palavras e imagens se podem compor muitas mais ideias do que só com princípios e as noções em que se baseia todo nosso conhecimento natural"


Estocando mais adiante:


" Finalmente, Moisés acreditou que esse ser que era Deus tinha o seu domicílio nos céus (Deuteronômio, Cap. XXXIII, 27), opinião que era frequente entre os gentios. Se reparmos agora nas revelações feitas a Moisés, verificaremos que elas se ajustavam a essas suas opiniões"


Sim, eu falo de Spinoza. Sua pretensão nesse Tratado Teológico-Político não é pequena; não estamos tratando de uma obra herética vulgar que se presta a vociferar contra as Escrituras e os religiosos, mas sim um potente discurso filosófico no qual se presta a combater as estruturas de opressão e controle da Religião dentro do seu próprio campo discursivo, desenvolvendo um método de interpretação para, no terreno da exegese bíblica, estabelecer qual é o verdadeiro significado e qual a função do Livro. Não, não é questão de queimarmos as Escrituras, elas têm o seu valor na medida em que nos ensinam coisas que não saberíamos sem sua existência, no entanto, é necessário interpretar seu discurso apelando para a Filologia e para a História, sem perder de vista um ponto de partida bastante óbvio: O Livro foi escrito por homens como nós, logo o que ele pretende - e aquilo em que ele se equivoca - trata-se de um produto humano feito para humanos; suas passagens, portanto, não estão livres dos nossos vícios e mesmo das nossas virtudes, ele está aqui, no plano terreno.  


Não é preciso ser um especialista em Religião para saber que é melhor defender o assassinato do Papa a demonstrar, discursivamente, que ele é apenas um Monarca como qualquer um outro - e é o que faz, na obra citada, Spinoza ao desancar, de antemão, os profetas, colocando-os aqui junto conosco, os reles mortais, sem negar-lhes a sabedoria ou a importância, mas lembrando que eles eram apenas intérpretes com uma enorme capacidade oratória; sim, ao retirar-lhes a aura de sacralidade, o que resta são ideólogos avant la lettre - porque isso não é feito de forma inconsciente pelo próprio profeta, consistindo as Escrituras, portanto,  em um conjunto de passagens "adaptadas à capacidade de compreensão de alguém, o que são defendidas, não sem graves prejuízos para a Filosofia, como se fossem ensinamentos divinos". Por analogia, os modernos doutores da Igreja, que arrogam para si o próprio monopólio da interpretação bíblica, não são, sob hipótese alguma, algo diferente.


Em seu coeso sistema filosófico, Spinoza estabelece um estatuto para a Imaginação no qual, de forma bastante resumida, ela é um meio pelo qual conhecemos as coisas não pelo entendimento das necessidades que as constitui  - sobretudo de suas causas -, mas sim por meio da mera aparências, dos efeitos que elas produziram. Os profetas, em última instância, fazem uso da imaginação, o que, no campo da filosofia política, resulta em qualquer coisa não-libertária, pois se funda na imaginação e não no conhecimento. E isso não é uma crítica moralista, algum eventual proveito que algum profeta pensou em tirar desse discurso não o torna melhor ou pior do que um outro profeta que o fez sem visar tal propósito, pois, em última instância, tal proveito seria mesmo falso, pois se não levaria seu povo à felicidade, não poderia fazer com ele próprio. 


Como bem dizia Deleuze, um spinozano suspeito, a Literatura é um arte que, por meio do ato de escrever, força a linguagem aos seus limites, o que consiste em última instância em não apenas escrever "em atenção a" (voltado para um determinado leitor), mas também em fazê-lo "no lugar de" (imerso em uma história universal); já filosofar é fazer o mesmo em relação ao pensamento, o que nos leva a tangenciar a zona em que o pensamento é limítrofe ao próprio não-pensamento; quando se escreve sobre Filosofia, portanto, força-se o pensamento por meio do ato de forçar a própria linguagem, o que é fascinante. Spinoza tinha consciência plena disso quando produziu esse Tratado, ele se volta a um determinado leitor, sejam os libertinos - calvinistas adeptos de ideias modernas como o republicanismo e a laicidade, geralmente urbanos e que não refutam de antemão as ideias do racionalismo - ou os próprios laicos e ateus que habitavam a Holanda de seu tempo - entusiasmados com as possibilidades que a Revolução Racionalista trazia consigo -, ao mesmo tempo em que ele se insere em uma história universal, na saga do povo hebreu - ao qual ele pertence - que ele pretende contar de uma forma desmistificadora para, da busca da expressão do significado no passado, chegar a formulação de um Estado de Direito Democrático, que não é - nem ele apresenta como - a última bolacha no pacote, mas é, dentro daquela conjuntura, a saída mais libertária alcançável - o que é próprio de seu realismo astucioso, que sabe muito bem que o projeto deve ser sim emancipatório, mas o buraco é (sempre) mais embaixo, ainda mais nas condições em que vivia, onde cada passo em falso poderia implicar na sua própria eliminação física.


Nada mais atual como podemos perceber pelo ponto de partida de nossa reflexão. O Estado de Direito Democrático em relação ao qual advogava Spinoza seria algo bastante avançado não só para o Brasil de hoje como para o mundo atual, basta ver em que se tornou a República Francesa, por exemplo. No nosso país, hoje, a guinada à direita da Igreja é apenas um capítulo do momento atual, afinal, novos movimentos cristãos de natureza incrivelmente sectária e reacionária - cujo projeto de poder bastante é claro - têm surgido e crescido de forma avassaladora, pautando com força o próprio debate eleitoral nacional, batendo de frente, inclusive, com os direitos civis, a ciência - e não o cientificismo, que fique claro -, a liberdade de pensamento e expressão e, vejam só, a própria ordem posta que é laica e democrática. 


No episódio em questão, a Igreja, não apenas disposta a pregar um discurso ao qual não aceita a submeter ao crivo do debate público, ainda faz uso dos elementos políticos que tem à disposição para impedir que haja discussão a respeito. É a mesma lógica que norteia aqueles que defendem proibição de pesquisa com células-tronco: Não estamos discutindo a aplicação de certas descobertas à luz da ética - seja lá por qual perspectiva for -, mas sim proibindo de antemão a própria descoberta e obtenção do conhecimento. Não se trata de um retorno à Idade Média ou à Holanda do século 17º - não é o caso, a História só se repete mesmo em chiste de filósofo -, mas de algo que está em ato. Ademais, Spinoza defendeu acima de tudo o a ligação íntima entre a dominação religiosa e a tirania - quando a primeira não se confunde totalmente com a segunda -, portanto, sua crítica se estende a muito mais do que àquela espécie de dominação, mas aos seus procedimentos particulares, rotuláveis das mais diversas maneiras ao longo do processo histórico - que agora, no entanto, reveste-se com um rótulo que reivindica para si aquela tradição, mesmo que dentro de um momento histórico outro.


Isso pouco ou nada tem a ver com cristianismo, posto que uma rápida leitura dos evangelhos nos prova que o homem que se dizia filho de Deus nos chamava de irmãos e que sua filosofia voltava-se para a desobediência e para a emancipação humana, renegando, inclusive, movimentos aparentemente contra-hegemônicos que, no fim das contas, compartilhavam os mesmos valores de quem diziam combater - como faziam Barrabás e os seus. É um debate enormíssimo, mas de forma imediata, a luta política neste momento é conservadora e se constitui na defesa da própria ordem - que se não produz a emancipação em si, porém, ao menos produz condições para tanto. Por mais divergência filosóficas que eu tenha com ela, a comunidade católica tem sim o direito de ter sua universidade, mas no momento em que ela existe está submetida às determinação, aos valores e aos objetivos da Constituição e não do direito canônico, tampouco do eclesiástico; ela tem o direito de construir um espaço no qual apresente sua visão e, até mesmo, desenvolva seu discurso, mas não de cercear o debate e proibir que outros apresentem sua visão das coisas. É necessário que se abra o olho para o tamanho - e a própria importância - da luta que está em curso.









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