sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Postagem sem Título

(Hamlet e Horácio no Cemitério - Delacroix)

A primeira coisa que eu fiz de maneira aficcionada na vida foi entender de carros. Com menos de cinco anos, eu já sabia diferenciar um Monza de um Chevette, sabia o que era uma Variant, uma Brasília. Nesses tempos, eu odiava estudar. Mamãe tentava me alfabetizar e eu fazia corpo mole, esperneava e até chegava a chorar de manha - sentia preguiça mesmo, aquilo era uma tortura pra mim. Eu gostava mesmo era de ouvir histórias, ver TV etc. Acho que só senti mesmo vontade de ler quando minha mãe me mostrou o primeiro gibi que eu vi na vida; desandei a decorar o alfabeto, juntar sílabas e poucos meses depois já conseguia ler. Era formidável!

Entrei na escola com seis anos já alfabetizado e tão logo desandei a ler livros - especialmente os de História. Adorava os Antigos, principalmente os gregos; as histórias das Guerras Greco-Pérsicas me causavam fascínio assim como a mitologia helênica - mas nunca, nunca gostei dos romanos. Fui um aluno razoável na primeira série, mas ainda era meio preguiçoso, só tive vontade de estudar as coisas de escola a partir de algum ponto da segunda série - cumpria as obrigações da escola por conta daquela coisa de filho único mimado que queria sempre tirar boas notas, mas gostava mesmo era de estudar as minhas coisas.

Comecei a simpatizar com ideias socialistas na sétima série depois de toda uma infância de militância liberal - acreditem, não é fácil fazer uma autocrítica dessas tão cedo. Acho que cheguei ao ápice do meu extremismo lá pela oitava série, mas mesmo aí eu nunca fui sectário: Fazia coisas que deixavam meus professores perplexos, fazia perguntas-tabu sobre a União Soviética, os questionava e no fim das contas, eu era um socialista mais independente do que o Trotsky - acho que, no fim das contas, eu era um marxista-hugoísta, sei lá. Continuei por aí no início do segundo grau só que com uma atitude mais niilista, odiava FHC e odiava o Governo Lula, meus professores - de esquerda, em geral - ficavam meio preocupados comigo.

No fim das contas, empurrava a escola com a barriga, odiava a minha adolecência, tinha amigos que adoravam quadrinhos e heavy metal - apesar de ser o único no grupo que, estranhamente, não gostava de rock - e me dedicava à prática do humor negro e à arte da polêmica. Vivia intensamente uma vida vazia e solitária. Nem pensava no futuro. Acho que terminei o Segundo Grau mesmo por insistência dos meus pais. Não tinha motivação. Não era feliz. Passei um ano sem fazer nada até que insistiram para que eu voltasse a estudar - não me lembro o que eu fiz nesses dois anos, talvez tenha trabalhado um pouco com eles, mas de resto foi um período incerto, obscuro e improdutivo. Fui estudar Direito há pouco mais de um ano e meio num ritmo de "então tá" e desde então tive experiências interessantes, fiz bons amigos e me tornei politicamente algo que eu não consigo me determinar, mas que as pessoas insistem em definir como socialista-libertário - passei a compreender melhor quem pensa e age de um modo diferente do que o meu e percebi que o buraco da humanidade é mais embaixo.

Mas também me tornei mais pessimista com uma série de coisas: Com o nosso futuro, com a minha geração. No fim das contas, acho que o navio não vai mais bater no rochedo: Ele já bateu. Nós é que estamos a idealizar infantilmente as tábuas de salvação que acabamos por abraçar - e só o futuro dirá se isso foi um lance de sorte ou de extremo azar; de repente, seria melhor termos morrido no naufrágio, afinal, sempre há coisas piores do que a noite eterna.

7 comentários:

  1. Uau, que relato maravilhoso!

    Sobretudo o período da infância à adolescência é relatado de maneira envolvente e fascinante - daria um filme.

    Agora, esse pessimismo exagerado no final... acho que um dia você vai olhar pra trás e rir dele. Ou então, só pra não perder a piada e continuar no clima que encerra opost, vai sentir saudades disso,...rs.

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  2. Hugo,

    No fim das contas, a pergunta que ninguém consegue responder é aquela velha de sempre: Quem sou eu?

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  3. Pois é, Luis é bem essa busca por uma completude que viria da descoberta do nosso ser que eu persigo mesmo, mas também é uma questão de entender o que eu estou sendo como o Maurício levantou: Sim, meu caro, espero que um dia eu leia isso e ria - porque, quem sabe, a sempre imprevisível maré me leve para a ilha de Utopia.

    abraços coletivos

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  4. Gosto muito desse tipo de relato. Revela como alguém vai descobrindo a si mesmo. Como vamos juntando as peças e desvendando o mistério de quem somos, ou ao menos parte dele. Mistura simplicidade, inocencia e o conhecimento.

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  5. de Italo Calvino:
    "Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser completamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis."

    "A vida de uma pessoa consiste num conjunto de acontecimentos, dos quais o último também poderia mudar o sentido de todo o conjunto."

    Andre

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  6. Obrigado, Desmanche de Celebridades :-)

    Bela citação esta do grande Ítalo Calvino, Andre - legal você tê-la trazido.

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  7. Em muitos pontos me identifiquei com o que você disse, cada época tem sua própria singeleza e peculiariedade.Todo o tempo é sempre controverso, não há vida tão longa que resolva ou jusifique tudo que se quer e que se pode ser.

    Beijo

    ps:o ápice certamnte foi o socialista-libertário e a parte do marxista-hugoista isso me fez rir a valer.

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